Desde o ano de 2021, quando muitos acreditavam que a questão estava finalmente resolvida, o polémico ficheiro SAF-T de contabilidade voltou a ganhar destaque e a gerar controvérsia. Esta situação reacendeu-se após a reeleição de Paula Franco como Bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), altura em que ela denunciou uma prática que considera inadequada e potencialmente abusiva: a Segurança Social está a solicitar este ficheiro no decorrer das suas inspeções.
É importante sublinhar que este ficheiro foi inicialmente concebido como um documento fiscal, destinado exclusivamente às Finanças. Portanto, a intervenção da Segurança Social levanta questões significativas. É fundamental compreender a base legal e os fundamentos utilizados pela Segurança Social para justificar este pedido, bem como avaliar os potenciais riscos e implicações desta prática para as empresas e para a confidencialidade dos dados contidos no ficheiro.
Fiscalização Intrusiva nas Empresas
O ficheiro SAF-T de contabilidade abrange dados sensíveis dos colaboradores que desempenham funções na área contabilística.
É imprescindível esclarecer exatamente a qual ficheiro nos referimos e detalhar minuciosamente o seu conteúdo. Este esclarecimento é essencial porque a sigla SAF-T é utilizada para identificar dois tipos distintos de ficheiros, cada um com objetivos e informações específicas. Portanto, é crucial delinear claramente as diferenças entre ambos para evitar ambiguidades e compreender plenamente a extensão das informações contidas.
O que é o ficheiro SAF-T (PT)?
SAF-T (PT) é a sigla de Standard Audit File for Tax Purposes – versão Portuguesa. Em outras palavras, sempre que se deparar com o termo SAFT-PT, saiba que se refere a um arquivo predefinido, em formato XML, que tem como objetivo reunir e exportar todas as informações fiscais e contabilísticas de uma empresa ao longo de um período específico.
Essencialmente, o SAF-T é um documento padronizado e legível, independentemente do software de faturação ou contabilidade utilizado pela empresa.
Este formato é de extrema importância, pois ao ser exportado mantendo a sua estrutura interna e funcionalidade, pode ser facilmente analisado por entidades de inspeção, acionistas, auditores internos e externos, bem como por revisores de contas.
Mas na prática, por que as empresas necessitam deste arquivo? A resposta é direta. Devido à obrigação legal que a maioria das empresas tem de comunicar à Autoridade Tributária os documentos de faturação e guias de transporte. Para cumprir esta obrigação de forma eficaz, basta enviar este arquivo mensalmente para a AT.
O que é o ficheiro SAF-T de Faturação?
O ficheiro SAF-T é um documento essencial que as empresas são legalmente obrigadas a enviar para as Finanças, sendo fundamental para a monitorização e fiscalização das suas operações financeiras. Este ficheiro contém uma vasta gama de informações detalhadas, abrangendo diversas áreas da atividade comercial da empresa. Especificamente, inclui dados minuciosos sobre todas as vendas realizadas, o que permite um acompanhamento meticuloso e preciso de todas as transações comerciais efetuadas. Através desta documentação, é possível rastrear cada operação de venda, garantindo assim a transparência e a conformidade com as regulamentações fiscais.
Além das vendas, o ficheiro SAF-T também abrange informações detalhadas sobre o Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), o que é crucial para a correta apuração e pagamento dos impostos. Estas informações proporcionam uma visão clara e detalhada dos impostos devidos e pagos, permitindo que as Finanças realizem uma fiscalização eficaz e assegurem que as empresas estão a cumprir com todas as suas obrigações fiscais. O ficheiro pode ainda incluir outros dados pertinentes que são relevantes para a fiscalização tributária, como informações sobre compras, fornecedores, e inventários.
O ficheiro SAF-T é uma ferramenta vital para garantir que as empresas operam de forma transparente e em conformidade com a legislação fiscal, proporcionando às autoridades fiscais todos os dados necessários para uma supervisão rigorosa e precisa.
O que é o Ficheiro SAF-T de Contabilidade?
O ficheiro SAF-T de contabilidade foi inicialmente previsto para ser enviado por todas as empresas, independentemente do seu porte ou ramo de atividade. Contudo, após várias considerações e discussões, a sua obrigatoriedade foi limitada apenas aos casos de inspeção fiscal.
Assim, atualmente, este ficheiro é solicitado pelas autoridades fiscais unicamente quando há uma necessidade de verificação mais profunda e específica das operações da empresa.
Este ficheiro é extremamente abrangente, incluindo todos os dados contabilísticos essenciais da empresa. Entre os dados contidos, estão informações detalhadas sobre os fornecedores, permitindo rastrear todas as entradas de bens e serviços na empresa.
Também inclui dados sobre os clientes, documentando todas as saídas de bens e serviços. As compras e vendas realizadas ao longo do período fiscal são igualmente detalhadas, proporcionando uma visão completa das operações comerciais. Além disso, o ficheiro abrange outras informações financeiras importantes, como os movimentos de caixa e os ativos e passivos da empresa.
Um aspeto adicional e significativo do ficheiro SAF-T de contabilidade é que ele contém informações de acesso dos utilizadores. Isto inclui a identidade dos funcionários do Contabilista Certificado que têm acesso ao sistema, o que é fundamental para garantir a segurança e a integridade dos dados contabilísticos. Esta funcionalidade permite rastrear quem acedeu a que informações e quando, adicionando uma camada extra de controlo e responsabilidade.
Devido à grande quantidade de dados sensíveis e confidenciais que abrange, este ficheiro tem sido frequentemente apelidado de “Big Brother fiscal”. A alcunha deve-se à capacidade deste ficheiro compilar informações extremamente detalhadas e sensíveis das empresas. Como diz o ditado, “o segredo é a alma do negócio”, e ter acesso ao ficheiro SAF-T permite às autoridades fiscais obter uma visão profunda e abrangente do funcionamento interno da empresa, incluindo o seu segredo mais valioso: a margem de lucro. Conhecer esta margem é fundamental, pois revela a rentabilidade real das operações empresariais e pode influenciar decisões estratégicas e concorrenciais.
Justificação da Segurança Social para Acesso ao SAF-T
Para fundamentar a solicitação do ficheiro SAF-T de contabilidade, a Segurança Social baseia-se no Decreto-Lei de 2012, que estabelece as suas competências e responsabilidades. Especificamente, a alínea f) do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 84/2012 confere à Segurança Social o poder de fiscalizar o “cumprimento das obrigações dos devedores com dívida à segurança social em execução fiscal” e de proceder à recolha de provas necessárias para tal verificação. Esta legislação permite à Segurança Social assegurar que os devedores cumprem as suas obrigações, incluindo o pagamento de contribuições devidas.
Para complementar esta base legal, a Segurança Social combina esta norma com disposições do Regime Jurídico da Atividade de Inspeção da Administração Direta e Indireta do Estado. O artigo 16.º deste regime jurídico outorga aos inspetores a autoridade para requisitar diversos tipos de documentação necessária para a sua atividade de inspeção. Isto inclui livros, documentos, ficheiros e outros registros que possam ser relevantes para a verificação do cumprimento das obrigações legais e fiscais das empresas.
Embora o ficheiro SAF-T de contabilidade não seja especificamente mencionado na legislação, ele é considerado mais um meio de prova entre os muitos que podem ser requisitados pelos inspetores. A Segurança Social argumenta que, dada a sua abrangência e detalhe, o ficheiro SAF-T é uma ferramenta valiosa para garantir a conformidade das empresas com as suas obrigações fiscais e sociais. No entanto, a falta de menção explícita ao ficheiro SAF-T nas disposições legais levanta questões sobre a adequação e os limites deste pedido, especialmente considerando a quantidade de dados sensíveis e confidenciais que ele contém.
Este contexto jurídico e operacional é utilizado pela Segurança Social para justificar a sua prática de solicitar o ficheiro SAF-T de contabilidade durante as suas inspeções, apesar de a sua principal função ser a de um documento fiscal, originalmente destinado apenas às Finanças. Desta forma, a Segurança Social procura garantir um cumprimento rigoroso das obrigações das empresas, utilizando todos os meios de prova ao seu dispor, mesmo que isso envolva ferramentas não mencionadas explicitamente na legislação.
Expansão do Pedido do SAF-T
Atualmente, observa-se uma tendência crescente na solicitação do ficheiro SAF-T de contabilidade por diversas entidades. Esta prática, que inicialmente era restrita a inspeções fiscais, está agora a expandir-se para outros contextos. Por exemplo, os bancos começaram a exigir este documento como parte do processo de aprovação de financiamentos. Ao requerer o ficheiro SAF-T, os bancos pretendem obter uma visão detalhada da situação financeira da empresa, o que lhes permite avaliar melhor a sua solvabilidade e capacidade de reembolso antes de concederem crédito.
Além disso, surgiram várias denúncias indicando que a Segurança Social tem requisitado este ficheiro até mesmo em situações de pedidos de pagamento de contribuições em prestações. Isto significa que, além de utilizá-lo para fiscalizações diretas, a Segurança Social está a ampliar o uso do ficheiro SAF-T a outras áreas da sua atividade, como a gestão de dívidas e contribuições parceladas.
No entanto, o ficheiro SAF-T de contabilidade contém uma vasta quantidade de dados confidenciais e sensíveis. Estes dados incluem informações detalhadas sobre transações financeiras, clientes, fornecedores, e até mesmo a identidade dos funcionários que acedem ao sistema contabilístico. Dada a sensibilidade dessas informações, levanta-se uma importante questão sobre a legitimidade e a adequação de qualquer entidade, além das Finanças, solicitar este ficheiro.
A solicitação e o manuseio de tal ficheiro por entidades diversas suscitam preocupações quanto à proteção de dados e à confidencialidade das informações empresariais. É crucial assegurar que a solicitação do ficheiro SAF-T seja feita dentro de um enquadramento legal claro e com garantias adequadas de proteção dos dados sensíveis, para evitar potenciais abusos ou utilizações indevidas das informações contidas no ficheiro. Assim, a crescente tendência de requisição deste documento deve ser acompanhada por um debate sobre as salvaguardas necessárias para proteger as empresas e garantir que os pedidos de acesso sejam devidamente justificados e regulamentados.
Ação da Bastonária da OCC
Face a esta situação, a Bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC), Paula Franco, anunciou que será elaborado um memorando dirigido à Segurança Social após uma análise cuidadosa e detalhada da questão em causa. Este documento terá como objetivo principal expor as preocupações e a posição oficial da OCC relativamente à solicitação do ficheiro SAF-T de contabilidade por parte da Segurança Social.
Paula Franco argumenta que o acesso a este ficheiro deveria ser restrito exclusivamente às Finanças, e apenas no contexto de uma inspeção fiscal, pois foi para este propósito que o ficheiro foi inicialmente concebido e regulamentado. A Segurança Social, por outro lado, defende uma interpretação mais ampla das suas competências de fiscalização, que inclui o acesso a este tipo de documentação.
A divergência de opiniões entre a OCC e a Segurança Social sobre quem deve ter o direito de requisitar o ficheiro SAF-T de contabilidade está a gerar considerável apreensão entre os empresários e os profissionais de contabilidade. Este novo pedido por parte da Segurança Social está a reavivar uma polémica que muitos pensavam estar resolvida desde 2021, quando a obrigatoriedade do envio do ficheiro foi limitada a situações de inspeção fiscal.
Os empresários estão preocupados com a possibilidade de uma ampliação dos poderes de fiscalização da Segurança Social sem uma base legal suficientemente clara e específica, o que pode comprometer a confidencialidade dos dados empresariais sensíveis e aumentar a burocracia. Este clima de incerteza está a causar um mal-estar generalizado no setor empresarial, uma vez que a gestão e proteção das informações financeiras são cruciais para a confiança e a segurança das operações comerciais.